quinta-feira, 17 de junho de 2010

As congruências da justiça portuguesa

Um tribunal de 1ª Instância condena o Estado a pagar uma brutal indemnização... porque acha verificados os "5" pressupostos que a Lei exige para que se possa condenar alguém como civilmente responsável pela verificação de um dano! Presume-se que esse Tribunal é composto por um ou três juízes que saibam Direito e que estejam na plena posse das respectivas faculdades mentais!
Em seguida, logo em seguida, um tribunal de 2ª Instância destrói toda a construção do tribunal de 1ª Instância: afinal não estavam verificados todos os pressupostos para condenar o Estado como civilmente responsável! Também aqui se presume que esse Tribunal é composto por três Desembargadores que sabem Direito e que estão na plena posse das respectivas faculdades mentais!
PERGUNTA: algum dos juízes de ambas as instâncias sabe mesmo (mesmo, mesmo) Direito?!
É que tanta variabilidade e oscilação de decisões só pode assentar numa de duas realidades:
1) ou a 1ª Instância ou a Relação têm magistrados que não sabem bem o que andam a fazer!
2) ou a questão é política e não jurídica, termos em que os magistrados, uns ou outros, terão de pensar bem se estão a desempenhar a função para que foram educados e para que são remunerados!
DIXIT!

terça-feira, 27 de abril de 2010

Um texto de Luís Soares de Oliveira... a não esquecer!

"Corria o ano da graça de 1962. A Embaixada de Portugal em Washington recebe pela mala diplomática um cheque de 3 milhões de dólares (em termos actuais algo parecido com € 50 milhões) com instruções para o encaminhar ao State Department para pagamento da primeira tranche do empréstimo feito pelos EUA a Portugal, ao abrigo do Plano Marshall.
O embaixador incumbiu-me – ao tempo era eu primeiro secretário da Embaixada – dessa missão.
Aberto o expediente, estabeleci contacto telefónico com a desk portuguesa, pedi para ser recebido e, solicitado, disse ao que ia. O colega americano ficou algo perturbado e, contra o costume, pediu tempo para responder.
Recebeu-me nessa tarde, no final do expediente. Disse-me que certamente havia um mal entendido da parte do governo português. Nada havia ficado estabelecido quanto ao pagamento do empréstimo e não seria aquele o momento adequado para criar precedentes ou estabelecer doutrina na matéria.
Aconselhou a devolver o cheque a Lisboa, sugerindo que o mesmo fosse depositado numa conta a abrir para o efeito num Banco português, até que algo fosse decidido sobre o destino a dar a tal dinheiro. De qualquer maneira, o dinheiro ficaria em Portugal. Não estava previsto o seu regresso aos EUA.
Transmiti imediatamente esta posição a Lisboa, pensando que a notícia seria bem recebida, sobretudo numa altura em que o Tesouro Português estava a braços com os custos da guerra em África. Pensei mal. A resposta veio imediata e chispava lume.
Não posso garantir a esta distância a exactidão dos termos mas era algo do tipo: "Pague já e exija recibo". Voltei à desk e comuniquei a posição de Lisboa.
Lançada estava a confusão no Foggy Bottom: - não havia precedentes, nunca ninguém tinha pago empréstimos do Plano Marshall; muitos consideravam que empréstimo, no caso, era mera descrição; nem o State Department, nem qualquer outro órgão federal, estava autorizado a receber verbas provenientes de amortizações deste tipo.
O colega americano ainda balbuciou uma sugestão de alteração da posição de Lisboa mas fiz-lhe ver que não era alternativa a considerar. A decisão do governo português era irrevogável.
Reuniram-se então os cérebros da task force que estabelecia as práticas a seguir em casos sem precedentes e concluíram que o Secretário de Estado - ao tempo Dean Rusk - teria que pedir autorização ao Congresso para receber o pagamento português. E assim foi feito.
Quando o pedido chegou ao Congresso atingiu implicitamente as mesas dos correspondentes dos meios de comunicação e fez manchete nos principais jornais. "Portugal, o país mais pequeno da Europa, faz questão de pagar o empréstimo do Plano Marshall"; "Salazar não quer ficar a dever ao tio Sam" e outros títulos do mesmo teor anunciavam aos leitores americanos que na Europa havia um país – Portugal – que respeitava os seus compromissos.
Anos mais tarde conheci o Dr. Aureliano Felismino, Director-Geral perpétuo da Contabilidade Pública durante o salazarismo (e autor de umas famosas circulares conhecidas ao tempo por "Ordenações Felismínicas" as quais produziam mais efeito do que os decretos do governo).
Aproveitei para lhe perguntar por que razão fizemos tanta questão de pagar o empréstimo que mais ninguém pagou. Respondeu-me empertigado: - "Um país pequeno só tem uma maneira de se fazer respeitar – é nada dever a quem quer que seja".
Lembrei-me desta gente e destas máximas quando há dias vi na televisão o nosso Presidente da República a ser enxovalhado pública e grosseiramente pelo seu congénere checo a propósito de dívidas acumuladas.
Eu ainda me lembro de tais coisas, mas a grande maioria dos Portugueses de hoje nem esse consolo tem.
Luís Soares de
Oliveira"

quarta-feira, 31 de março de 2010

CRIMES CONTRA PROFESSORES: A lei como fantoche da política

O último fim-de-semana trouxe para a ribalta mediática mais um suposto problema nacional, gerado por políticos não satisfeitos com os demasiados problemas reais que o País enfrenta. O problema “descoberto” é o da alegada necessidade de transformar os crimes contra professores em crimes públicos! Traduzindo, para linguagem não iniciática: a possibilidade de os crimes contra professores poderem ser investigados, e os respectivos autores ser levados a julgamento, sem que a vítima tenha de apresentar uma queixa.
Confesso que o surgimento da questão me espantou. E o espanto inicial só foi ultrapassado quando, depois de um hábil levantar de lebre por um partido político, vi sindicatos e Governo correrem atrás da peça de caça! A questão é candente, gritou-se! A reforma é imprescindível, exigiu-se! Estamos dispostos a reflectir, sussurou-se!
Ora, com que crimes “contra professores” poderá a política estar a querer entreter-nos? Considerando que em Portugal as reformas são todas motivadas por casos concretos noticiados por televisões e imprensa, e não por qualquer pensamento consistente desenvolvido sobre a questão, há que olhar para os receios motivadores do ímpeto reformista. E feita tal análise, pela recordação das páginas dos jornais da semana antecedente, os crimes contra professores que motivaram a troca de galhardetes políticos serão crimes de homicídio, crimes de ofensas à integridade física, crimes de ameaças e de coacção e crimes contra a honra (injúrias e difamações). Com alguma imaginação podemos ainda pensar em crimes contra a reserva da vida privada e crimes de gravações e fotografias ilícitas. Outros se poderão prefigurar, mas estes serão por certo os mais plausíveis, em termos de expressividade estatística (a confiar nos dados divulgados na comunicação social após os casos que nos fizeram acordar para um problema que desde sempre existiu nas Escolas: o bullying contra alunos, funcionários e professores).
Cabe então perguntar: perante o sistema legal vigente há mesmo a necessidade de reformar novamente a Lei para acudir a este problema descoberto pela incansável política lusa? A resposta é simples, clara, linear: não!
Em Portugal, de acordo com a Lei em vigor, quem cometer qualquer atentado contra a vida seja de quem for, pratica um crime público. Logo, a questão nem se põe se de homicídios estivermos a falar. Também quem cometer um crime contra a integridade física de "funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar" (vá-se lá saber até o que é, com rigor, um “membro” da comunidade escolar!), pratica um crime público! É o que resulta da lei vigente, no seu teor literal.
Não há polémica, não há dúvida, não há problema: um homicídio, contra qualquer pessoa, ou um atentado contra a integridade física de um professor são crimes públicos! O Ministério Público, as Polícias, podem investigar livremente, acusar ou não acusar, levar a julgamento ou não, sem que a vítima tenha de apresentar qualquer queixa. O mesmo vale para os crimes de ameaças e de coacção cometidos contra cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar.
Mas não só! Se fossem crimes semi-públicos (i.e., que dependessem de queixa da vítima ou de pessoas a esta ligadas), que não são, que problema existiria? Nenhum! A integridade física, nos termos da melhor e mais avançada doutrina jurídica, é um bem disponível para efeitos de consentimento do seu titular na respectiva violação. Por isso são possíveis intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos. Por isso existem tatuagens, cortes de cabelo, extracções de sangue, etc. Assim, se um Professor é agredido e não apresenta queixa, ele saberá das razões que o levam a não querer ver a agressão perseguida. Mas a questão a por-se até deve ser outra: o que mudaria se passasse a ser crime público, admitindo que não o é já? Haverá alguma agressão a um docente que deixe de ocorrer, no futuro, por se tratar de um crime público? É de meridiana clareza que não.
Vejamos então os demais crimes plausíveis de ser praticados contra professores, mercê da sua função: a difamação, as injúrias, a violação de domicílio e a perturbação da vida privada, a devassa da vida privada, a devassa da vida privada por meio da informática, as gravações e fotografias ilícitas. Quanto à devassa da vida privada por meio da informática também é já um crime público (e talvez mal, diga-se desde já!). Quanto aos demais crimes, são crimes semi-públicos, dependendo de queixa para que possam ser investigados e julgados. E bem!
Vejamos: as injúrias, que são o mais leve de todos os crimes previstos no Código Penal, passam, nesses casos (cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar), de crime particular a crime semi-público! É assim e tem de ser, dado o tipo muito particular de bem jurídico aí tutelado pela Lei (a honra, a consideração, o bom-nome). É que nem todos nos ofendemos com o mesmo tipo de afirmações, nem todos temos os mesmos padrões e sensibilidade. Logo, não poderia nunca – racionalmente – ser um crime público. E o mesmo vale para as violações de domicílio, para as devassas da vida privada, para as gravações e fotografias ilícitas. Transformar estes crimes em crimes públicos é totalmente ilógico, contrário ao sistema e aos princípios que norteiam todo o direito penal (desde logo o princípio da intervenção mínima da lei punitiva).
É que a transformação desses crimes em crimes públicos pode ser perniciosa: pode criar situação ainda mais devassadora da vida privada dos professores vítimas de tal tipo de crimes, do que os crimes dessa natureza que contra eles foram praticados: os factos da vida privada deixam de ser conhecidos por aqueles (alunos ou famílias de alunos) que cometem o crime, passando – obrigatoriamente e sem que o professor vítima o possa evitar –, a ser do conhecimento de toda a sociedade, ao desencadearem-se processos criminais sem ou contra a vontade da vítima.
Então porque Diabo é que os partidos políticos andam agora a querer tutelar um problema que inexiste? A resposta parece-me, do meu canto de observação, simples: enquanto se entretém a colectividade – desconhecedora dos meandros da lei – com falsas questões, as questões importantes, aquelas que se não resolvem por Decretos, mas por acções, mantêm-se no esquecimento.
É este apenas mais um caso, óbvio, de histeria causada por uma demagogia populista, que agita medos irracionais da sociedade com exclusivos propósitos eleitoralistas. Quem se não lembra da defesa da incriminação dos grafitters, como se a lei não previsse já, naquela data como hoje, a incriminação do crime de dano!
Mas atenção. Estas afirmações não se limitam a ser populistas! Elas não são inócuas! Ou são afirmações ignorantes da lei em vigor, o que é perigoso, para quem tem intenções reformistas da lei penal, ou são manipulações intencionais do caminho de qualquer sociedade democrática evoluída, o que além de perigoso é lamentável. É que as ânsias securitárias das massas são já bastantes. Não carecem de encontrar caudilhos que as exacerbem, nem de Governantes que as não controlem. Todos os movimentos securitários, todas as sanhas persecutórias, todas as manipulações da colectividade, têm o mesmo porto de destino: criminalizações inconvenientes, violações de princípios, caminhos que uma sociedade democrática – assente nos valores afirmados no pórtico da nossa Constituição – não pode querer trilhar.
Os ímpetos justicialistas deste jaez são intoleráveis! Cabe à sociedade fazer-lhes frente. Em pose firme, forte, fria. Tal como frente deve ser feita às tentações reformistas daqueles que só se lembram da lei quando eles próprios se vêem enleados em malhas processuais politicamente inconvenientes.
Cabe recordar que o Direito e o Processo Penal são o último reduto de tutela dos Direitos, Liberdades e Garantias. A respectiva previsão constitucional é totalmente irrelevante se na lei ordinária, se nesses Direitos de aplicação quotidiana, tais Direitos, Liberdades e Garantias não forem tutelados, ponderados, implementados. Ora, cada vez que atomisticamente se procede a uma reforma legal, sem consideração do conjunto, destrói-se um pouco mais do edifício construído, sem que outro capaz seja erguido no seu lugar. Este caminho de destruição paulatina do nosso Direito tem sido o que se tem trilhado na última década. E com ele tem sido cada vez maior a descredibilização da própria Justiça, não sem que esta tenha contribuído seriamente para o actual estado de coisas.
Se nada for feito, se não se contiverem estas tendências incompreensíveis, não faltará muito para ouvir no discurso político português defesas inflamadas de um direito penal semelhante àquele que foi instituído na Alemanha e na Itália dos anos ’20 e ’30 do século XX, na União Soviética no post 1917, e em tantos outros Estados que actualmente são considerados regimes autoritários, autocráticos, que desprezam os valores básicos das sociedades democráticas ocidentais.E que este movimento é imparável, mantendo-se num moto contínuo, viu-se logo ao longo da semana… é que na mesma linha da atrás analisada reforma da natureza dos crimes contra professores, vai a ideia “fantástica” de querer criminalizar as “prendas” dadas a políticos! Como se tal não estivesse já, há décadas, compreendido em letra de forma na lei em vigor.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Paulo Portas e a Lei Penal... e a histeria que atrás dele vai!

Em Portugal, quem cometer qualquer atentado contra a integridade física de "funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar", pratica um crime PÚBLICO! Mas que raio é que o Sindicato, a Ministra e o CDS-PP andam agora a querer reformar?
E as injúrias, que são o mais leve de todos os crimes previstos no Código Penal, passam, nesses casos, de crime particular a crime semi-público! É assim e tem de ser, dado o tipo muito particular de bem jurídico aí tutelado pela Lei. Nem todos nos ofendemos com o mesmo tipo de "injúrias", nem todos temos os mesmos padrões e sensibilidade. Logo, não poderia nunca ser - racionamente - um crime público.
Esta histeria colectiva causada por Paulo Portas lembra uma outra, mais antiga, também com contornos penais: que deveria ser criminalizado o autor de qualquer grafitti! Como se a lei não previsse já, naquela data, a incriminação do crime de dano!
Estas afirmações não são só populistas! Não! São ignorantes da lei em vigor... o que é perigoso, para quem tem tantas intenções reformistas da lei penal!

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Reflexões sobre provas proibidas...

O julgamento penal tem uma especial dimensão moral. Está preocupado com a determinação da culpa-moral... aquela que pode justificar a inflição de sofrimento e humilhação ao indivíduo (o que não deixa de ser um resquício histórico)... A boa-vontade com que a comunidade encara a decisão penal e a autoridade do tribunal depende do modo como a mesma comunidade encara a legitimidade moral do sistema... esta legitimidade depende por seu turno da "justiça" e moralidade do procedimento, da incorruptibilidade das magistraturas, da eficiência das polícias, da precisão e competência do ministério público. Ademais, não faria sentido impôr a lei, restabelecê-la, castigar o infractor... usando meios desonrosos ou desleais. Repare-se, quer a prevenção geral, quer a prevenção especial, quer mesmo a retribuição como fins das penas perdem legitimidade se o "carrasco" usa de meios desonestos, mesmo para com um "potencial" ou "suspeito" criminoso... é que mesmo usando tais meios sempre se pode vir a provar a inocência do arguido! Então como ficaria a auto-estima da máquina e a imagem que dela tem o público?
Claro que o argumento pode dar para o lado oposto: então se o tribunal não condena com base em provas ilegalmente obtidas, deixando escapar o homicida, é o sentimento de justiça da comunidade que se sente traído, e mais, é um sentimento de insegurança que perpassa o todo social. Ao invés, se procede admitindo a prova ilegalmente obtida, está a ratificar os comportamentos ilegais das polícias, também por aqui deixando no todo social uma ideia de desprotecção contra o crime (aqui o crime praticado pela "máquina")!
Assim que a proibição de prova tenha, pelo menos, um efeito indiscutível, que é o efeito dissuasor: os órgãos de polícia criminal sabem que não vale a pena tentar essas vias pois os seus objectivos não serão conseguidos se seguirem tal caminho. Do mesmo passo evita o legislador preventivamente lesões dos direitos das pessoas, mesmo as feitas pelas autoridades judiciárias.
Mas atenção: falamos de provas comprovadamente nulas! Não de provas cuja invalidade não resulta clara! E menos ainda falamos de consequências outras, que não criminais, dessas mesmas provas, ainda que juridicamente inválidas no plano criminal!
É que parece muitas vezes esquecer-se que uma prova nula para efeitos criminais, não passa a ser inexistente para todos os efeitos jurídicos. Há aliás jurisprudência consolidada de Tribunais portugueses a dar relevância no âmbito do direito civil, por exemplo, a provas totalmente nulas para efeitos criminais. E se assim é - e foi - em tantos casos, estranho seria que o deixasse de ser apenas num ou noutro caso!

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

"Imaginem" por MÁRIO CRESPO (a ver se o divulgamos)

Imaginem Imaginem que todos os gestores públicos das setenta e sete empresas do Estado decidiam voluntariamente baixar os seus vencimentos e prémios em dez por cento. Imaginem que decidiam fazer isso independentemente dos resultados. Se os resultados fossem bons as reduções contribuíam para a produtividade. Se fossem maus ajudavam em muito na recuperação. Imaginem que os gestores públicos optavam por carros dez por cento mais baratos e que reduziam as suas dotações de combustível em dez por cento. Imaginem que as suas despesas de representação diminuíam dez por cento também. Que retiravam dez por cento ao que debitam regularmente nos cartões de crédito das empresas. Imaginem ainda que os carros pagos pelo Estado para funções do Estado tinham ESTADO escrito na porta. Imaginem que só eram usados em funções do Estado. Imaginem que dispensavam dez por cento dos assessores e consultores e passavam a utilizar a prata da casa para o serviço público. Imaginem que gastavam dez por cento menos em pacotes de rescisão para quem trabalha e não se quer reformar. Imaginem que os gestores públicos do passado, que são os pensionistas milionários do presente, se inspiravam nisto e aceitavam uma redução de dez por cento nas suas pensões. Em todas as suas pensões. Eles acumulam várias. Não era nada de muito dramático. Ainda ficavam, todos, muito acima dos mil contos por mês. Imaginem que o faziam, por ética ou por vergonha. Imaginem que o faziam por consciência. Imaginem o efeito que isto teria no défice das contas públicas. Imaginem os postos de trabalho que se mantinham e os que se criavam. Imaginem os lugares a aumentar nas faculdades, nas escolas, nas creches e nos lares. Imaginem este dinheiro a ser usado em tribunais para reduzir dez por cento o tempo de espera por uma sentença. Ou no posto de saúde para esperarmos menos dez por cento do tempo por uma consulta ou por uma operação às cataratas. Imaginem remédios dez por cento mais baratos. Imaginem dentistas incluídos no serviço nacional de saúde. Imaginem a segurança que os municípios podiam comprar com esses dinheiros. Imaginem uma Polícia dez por cento mais bem paga, dez por cento mais bem equipada e mais motivada. Imaginem as pensões que se podiam actualizar. Imaginem todo esse dinheiro bem gerido. Imaginem IRC, IRS e IVA a descerem dez por cento também e a economia a soltar-se à velocidade de mais dez por cento em fábricas, lojas, ateliers, teatros, cinemas, estúdios, cafés, restaurantes e jardins. Imaginem que o inédito acto de gestão de Fernando Pinto, da TAP, de baixar dez por cento as remunerações do seu Conselho de Administração nesta altura de crise na TAP, no país e no Mundo é seguido pelas outras setenta e sete empresas públicas em Portugal. Imaginem que a histórica decisão de Fernando Pinto de reduzir em dez por cento os prémios de gestão, independentemente dos resultados serem bons ou maus, é seguida pelas outras empresas públicas. Imaginem que é seguida por aquelas que distribuem prémios quando dão prejuízo. Imaginem que país podíamos ser se o fizéssemos. Imaginem que país seremos se não o fizermos. mário crespo

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Comemorações da República por Alberto Gonçalves

Opinião de Alberto Gonçalves no DN
Cem anos de simulação
Não vou aos touros, não gosto (genericamente) de fado e nunca experimentei o mais vago sentimento monárquico. Mas comemorar a Iª República é igual a comemorar o dia em que o nosso tio-avô contraiu sífilis. A abolição da monarquia constitucional resultou da acção de um pequeno bando de rústicos, de carácter, conduta e aspecto duvidosos. O regime imposto pelo bando foi um exercício de limitação sucessiva de direitos concedidos, é verdade que moderadamente, até 1910. Fora a famosa liberdade religiosa, um pretexto para perseguir o clero, no resto, contas por alto, condicionou-se a liberdade de expressão, mediante censura activa, e a liberdade de voto, entretanto restrita aos alfabetizados – cujo número, durante a vigência “progressista” de Afonso Costa e comparsas, misteriosamente quase não sofreu alterações (durante Salazar, curiosamente, sim).
As consequências imediatas de semelhante delírio traduziram-se na emergência do Estado Novo, que adaptou a trela nos costumes e contrapôs ao caos governativo e económico um modelo de ordem, para alívio inicial das massas. As consequências a longo prazo ainda se sentem hoje, quando um país teoricamente civilizado festeja com pompa oficial a delinquência e o atraso de vida, afinal os autênticos “valores” da I República, de que a III, para nosso embaraço, pelos vistos não abdica.
Alberto Gonçalves
Diário de Nótícias, 31 de Janeiro de 2010