quarta-feira, 31 de março de 2010

CRIMES CONTRA PROFESSORES: A lei como fantoche da política

O último fim-de-semana trouxe para a ribalta mediática mais um suposto problema nacional, gerado por políticos não satisfeitos com os demasiados problemas reais que o País enfrenta. O problema “descoberto” é o da alegada necessidade de transformar os crimes contra professores em crimes públicos! Traduzindo, para linguagem não iniciática: a possibilidade de os crimes contra professores poderem ser investigados, e os respectivos autores ser levados a julgamento, sem que a vítima tenha de apresentar uma queixa.
Confesso que o surgimento da questão me espantou. E o espanto inicial só foi ultrapassado quando, depois de um hábil levantar de lebre por um partido político, vi sindicatos e Governo correrem atrás da peça de caça! A questão é candente, gritou-se! A reforma é imprescindível, exigiu-se! Estamos dispostos a reflectir, sussurou-se!
Ora, com que crimes “contra professores” poderá a política estar a querer entreter-nos? Considerando que em Portugal as reformas são todas motivadas por casos concretos noticiados por televisões e imprensa, e não por qualquer pensamento consistente desenvolvido sobre a questão, há que olhar para os receios motivadores do ímpeto reformista. E feita tal análise, pela recordação das páginas dos jornais da semana antecedente, os crimes contra professores que motivaram a troca de galhardetes políticos serão crimes de homicídio, crimes de ofensas à integridade física, crimes de ameaças e de coacção e crimes contra a honra (injúrias e difamações). Com alguma imaginação podemos ainda pensar em crimes contra a reserva da vida privada e crimes de gravações e fotografias ilícitas. Outros se poderão prefigurar, mas estes serão por certo os mais plausíveis, em termos de expressividade estatística (a confiar nos dados divulgados na comunicação social após os casos que nos fizeram acordar para um problema que desde sempre existiu nas Escolas: o bullying contra alunos, funcionários e professores).
Cabe então perguntar: perante o sistema legal vigente há mesmo a necessidade de reformar novamente a Lei para acudir a este problema descoberto pela incansável política lusa? A resposta é simples, clara, linear: não!
Em Portugal, de acordo com a Lei em vigor, quem cometer qualquer atentado contra a vida seja de quem for, pratica um crime público. Logo, a questão nem se põe se de homicídios estivermos a falar. Também quem cometer um crime contra a integridade física de "funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar" (vá-se lá saber até o que é, com rigor, um “membro” da comunidade escolar!), pratica um crime público! É o que resulta da lei vigente, no seu teor literal.
Não há polémica, não há dúvida, não há problema: um homicídio, contra qualquer pessoa, ou um atentado contra a integridade física de um professor são crimes públicos! O Ministério Público, as Polícias, podem investigar livremente, acusar ou não acusar, levar a julgamento ou não, sem que a vítima tenha de apresentar qualquer queixa. O mesmo vale para os crimes de ameaças e de coacção cometidos contra cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar.
Mas não só! Se fossem crimes semi-públicos (i.e., que dependessem de queixa da vítima ou de pessoas a esta ligadas), que não são, que problema existiria? Nenhum! A integridade física, nos termos da melhor e mais avançada doutrina jurídica, é um bem disponível para efeitos de consentimento do seu titular na respectiva violação. Por isso são possíveis intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos. Por isso existem tatuagens, cortes de cabelo, extracções de sangue, etc. Assim, se um Professor é agredido e não apresenta queixa, ele saberá das razões que o levam a não querer ver a agressão perseguida. Mas a questão a por-se até deve ser outra: o que mudaria se passasse a ser crime público, admitindo que não o é já? Haverá alguma agressão a um docente que deixe de ocorrer, no futuro, por se tratar de um crime público? É de meridiana clareza que não.
Vejamos então os demais crimes plausíveis de ser praticados contra professores, mercê da sua função: a difamação, as injúrias, a violação de domicílio e a perturbação da vida privada, a devassa da vida privada, a devassa da vida privada por meio da informática, as gravações e fotografias ilícitas. Quanto à devassa da vida privada por meio da informática também é já um crime público (e talvez mal, diga-se desde já!). Quanto aos demais crimes, são crimes semi-públicos, dependendo de queixa para que possam ser investigados e julgados. E bem!
Vejamos: as injúrias, que são o mais leve de todos os crimes previstos no Código Penal, passam, nesses casos (cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar), de crime particular a crime semi-público! É assim e tem de ser, dado o tipo muito particular de bem jurídico aí tutelado pela Lei (a honra, a consideração, o bom-nome). É que nem todos nos ofendemos com o mesmo tipo de afirmações, nem todos temos os mesmos padrões e sensibilidade. Logo, não poderia nunca – racionalmente – ser um crime público. E o mesmo vale para as violações de domicílio, para as devassas da vida privada, para as gravações e fotografias ilícitas. Transformar estes crimes em crimes públicos é totalmente ilógico, contrário ao sistema e aos princípios que norteiam todo o direito penal (desde logo o princípio da intervenção mínima da lei punitiva).
É que a transformação desses crimes em crimes públicos pode ser perniciosa: pode criar situação ainda mais devassadora da vida privada dos professores vítimas de tal tipo de crimes, do que os crimes dessa natureza que contra eles foram praticados: os factos da vida privada deixam de ser conhecidos por aqueles (alunos ou famílias de alunos) que cometem o crime, passando – obrigatoriamente e sem que o professor vítima o possa evitar –, a ser do conhecimento de toda a sociedade, ao desencadearem-se processos criminais sem ou contra a vontade da vítima.
Então porque Diabo é que os partidos políticos andam agora a querer tutelar um problema que inexiste? A resposta parece-me, do meu canto de observação, simples: enquanto se entretém a colectividade – desconhecedora dos meandros da lei – com falsas questões, as questões importantes, aquelas que se não resolvem por Decretos, mas por acções, mantêm-se no esquecimento.
É este apenas mais um caso, óbvio, de histeria causada por uma demagogia populista, que agita medos irracionais da sociedade com exclusivos propósitos eleitoralistas. Quem se não lembra da defesa da incriminação dos grafitters, como se a lei não previsse já, naquela data como hoje, a incriminação do crime de dano!
Mas atenção. Estas afirmações não se limitam a ser populistas! Elas não são inócuas! Ou são afirmações ignorantes da lei em vigor, o que é perigoso, para quem tem intenções reformistas da lei penal, ou são manipulações intencionais do caminho de qualquer sociedade democrática evoluída, o que além de perigoso é lamentável. É que as ânsias securitárias das massas são já bastantes. Não carecem de encontrar caudilhos que as exacerbem, nem de Governantes que as não controlem. Todos os movimentos securitários, todas as sanhas persecutórias, todas as manipulações da colectividade, têm o mesmo porto de destino: criminalizações inconvenientes, violações de princípios, caminhos que uma sociedade democrática – assente nos valores afirmados no pórtico da nossa Constituição – não pode querer trilhar.
Os ímpetos justicialistas deste jaez são intoleráveis! Cabe à sociedade fazer-lhes frente. Em pose firme, forte, fria. Tal como frente deve ser feita às tentações reformistas daqueles que só se lembram da lei quando eles próprios se vêem enleados em malhas processuais politicamente inconvenientes.
Cabe recordar que o Direito e o Processo Penal são o último reduto de tutela dos Direitos, Liberdades e Garantias. A respectiva previsão constitucional é totalmente irrelevante se na lei ordinária, se nesses Direitos de aplicação quotidiana, tais Direitos, Liberdades e Garantias não forem tutelados, ponderados, implementados. Ora, cada vez que atomisticamente se procede a uma reforma legal, sem consideração do conjunto, destrói-se um pouco mais do edifício construído, sem que outro capaz seja erguido no seu lugar. Este caminho de destruição paulatina do nosso Direito tem sido o que se tem trilhado na última década. E com ele tem sido cada vez maior a descredibilização da própria Justiça, não sem que esta tenha contribuído seriamente para o actual estado de coisas.
Se nada for feito, se não se contiverem estas tendências incompreensíveis, não faltará muito para ouvir no discurso político português defesas inflamadas de um direito penal semelhante àquele que foi instituído na Alemanha e na Itália dos anos ’20 e ’30 do século XX, na União Soviética no post 1917, e em tantos outros Estados que actualmente são considerados regimes autoritários, autocráticos, que desprezam os valores básicos das sociedades democráticas ocidentais.E que este movimento é imparável, mantendo-se num moto contínuo, viu-se logo ao longo da semana… é que na mesma linha da atrás analisada reforma da natureza dos crimes contra professores, vai a ideia “fantástica” de querer criminalizar as “prendas” dadas a políticos! Como se tal não estivesse já, há décadas, compreendido em letra de forma na lei em vigor.

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