terça-feira, 3 de novembro de 2009

Dia de Finados (texto de Alcione Araújo)

Alcione Araújo:
"Hoje é dia de tatear o coração e sentir as nuances da mesma dor nos buracos e lacunas deixados pelos afetos que fizeram de mim o que sou e partiram antes da hora. É dia de revolver a memória e reencontrar suas imagens, que, imunes ao tempo, são as mesmas de antes da despedida: umas afáveis e acolhedoras, outras mansas e silenciosas, algumas alegres, iluminadas e até eufóricas, e as momentaneamente indiferentes – viviam o que lhes coubera viver, sem saber que a partida estava próxima. E assim permanecem comigo. Todas me amavam, e eu também as amava, como amo ao lembrá-las, abraçá-las, tocar-lhes a mão, beijar-lhes o rosto, enquanto sussurramos segredos e intimidades. Não são mundos diferentes, mas tempos diferentes, que a memória aproxima e o coração reúne. Não é apenas que me habitam, os meus afetos me constituem. Por isso, hoje é dia de saudade. Melhor que seja essa dor silenciosa e resignada. Se gritasse, dilacerasse, lancinasse, não suportaria, nem teria como arrancá-la de dentro de mim. Muda e quieta, a saudade dos meus afetos é também saudade de mim. Da pessoa melhor que fui com eles, do que me deram em vida, do que deles herdei. O que me tornei foi na ausência deles: mais pobre, mais cético, quem sabe menos amado. Trago-os no coração como pedaços de mim, e na memória para não me esquecer de que são pedaços de mim. Eu sou em pedaços. Quando o esquecimento vence a memória, os afetos que partiram começam a morrer. Sei de povos que só os dão por mortos quando seus nomes não são mais citados. Sei da mulher que um dia não conseguiu mais se lembrar do rosto da mãe. Inconformada com a ingratidão da memória, que a matara definitivamente, se desesperou e chorou o próprio abandono. A memória não lhe devolveu a mãe. Não choro meus afetos mortos e sou cético do nosso reencontro. Choro o que deles morre em mim e o que de mim morre com eles. Cada partida apaga uma luz em mim. Aos poucos vou me apagando em vida. Em dias como hoje, a memória ilumina lacunas e buracos, de onde eles surgem como Lázaros redivivos. Sei que é obra da saudade, mas meu coração esburacado se sente consolado. Meus mortos jazem em mim; sou um cemitério vivo dos meus afetos que partiram – e até de alguns vivos, que brincam no playground no meu coração –, enquanto a memória vencer o esquecimento. Enterrados longe de mim estão seus despojos, à mercê de vermos ávidos. Sorvidos e absorvidos, são húmus de novas vidas. Tudo o que resta deles está em mim. E invertem-se os papéis: sou o que fizeram de mim, agora eles são o que eu fizer deles. O coração e a memória os mantêm vivos sem custo nem esforço. O amor, provisório entre os vivos, é eterno para os mortos. Sem flores, sem velas nem lágrimas, hoje é dia de revolver a memória e, com o meu amor sem resposta e a saudade sem fim, visitar os mortos que jazem em mim. Eles não vão ressuscitar, e nada vai mudar, mas o meu coração esburacado vai se sentir consolado"

1 comentário:

  1. SM....

    A maior parte da vezes não é da dor que nos lembramos quando lembramos os nossos mortos.
    Não posso falar no plural!

    Há perdas que sabe que não tive. Dores para mim indiziveis por não ter tido ainda necessidade de encontrar as palavras que emprestem uma concretude ao inominavel e assim o tornem mais suportavel.
    Mas não é com dor que na maioria das ocasiões lembro os que partiram.
    A não ser quando recordo o periodo que antecedeu a morte. Essa recordação traz-me angústia. Essa entristesse-me! Essa em última análise assusta-me!
    E por isso tento não ter um dia para chorar os mortos, ou para os lembrar, os evocar.
    Fazem parte de mim, sempre presentes, mesmo quando ausentes de uma memória imediata. São história. São a minha história!

    E no fundo, porque nos sabemos mortais amamos.
    Porque nos sabemos mortais desejamos.
    Porque nos sabemos mortais nos rimos.
    Porque nos sabemos mortais somos sequiosos.
    Na esperança efemera de vencermos a morte.

    Eu não tenho um dia para os mortos!

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