segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O significado da abstenção nas eleições europeias

A abstenção é a mais pura e simples reacção dos mansos,
dos que nada podem fazer contra a maquiavélica simulação democrática em que os sistema aprisiona os cidadãos

Por Paulo Saragoça da Matta

Mercê do comportamento dos eleitores europeus no último sufrágio para o Parlamento Europeu, voltou a discutir-se o significado e as causas da abstenção. Certo é que, desta vez, a discussão não teve metade do eco das últimas eleições. De todo o modo, o tópico discursivo manteve-se: a Europa deixou de ser (alguma vez foi?) uma Europa dos cidadãos? A Europa é cada vez mais (sempre foi?) uma Europa de cliques político-partidárias?
O simples modo como a questão é colocada seria motivo suficiente para a reflexão. Mas o próprio decréscimo da importância da discussão à volta do tema constitui também um motivo autónomo de análise. Vejamos as questões pela ordem com que, a nosso ver, se implicam, não sem antes fazer uma declaração de interesse: sou profundamente europeísta, o que não significa que deixe de ver a realidade como ela é! Adiante.
Tal como o Estado moderno ocidental, também a Europa vive uma ficção de democracia. A Europa não teve uma origem democrática, não terá um porvir democrático e, mesmo no seu quotidiano, são mais aparentes do que reais as características daquilo que nos ensinaram ultimamente que deve ser uma democracia. Sim, que a Democracia que hoje nos vendem (e vendem, porque a pagamos cara), nada tem que ver com o conceito técnico originário de democracia.

E se isso é verídico como tese, igualmente o é como resultado de análise, em Portugal, na Europa, no Mundo. Na verdade, a Europa e o Estado são construções gizadas e construídas de cima para baixo. Fruto das ideias de alguns, implementadas pelo poder de alguns outros, apresenta-se aos habitantes do território em que os tais poderes são exercidos como algo irrecusável, tais os méritos que se lhe anunciam. Foi assim que começamos com a CECA, foi assim que nos levaram até à CEE, e, mais recentemente, que nos mostraram a União. Quando se perguntou a algum Povo se queria integrar a União (o que por regra não foi o que sucedeu no clube dos 27 que hoje formamos), colocou-se-lhe a questão de modo simplista e irrecusável: ou a ordem, ou o chaos. E sempre que os políticos tiveram medo da reacção dos cidadãos, a opção foi simples: decidiram nem sequer lhes perguntar nada, mesmo que ao fazê-lo violassem compromissos eleitorais expressos. Paralelamente, aos Povos a quem políticos “insensatos” colocaram a questão, a resposta foi, por regra, um rotundo Não! Exemplos, de uma e outra situação, seriam aqui ociosos.

Será então de estranhar que os cidadãos se abstenham nas eleições europeias? Será de causar espanto que os cidadãos, mesmo em eleições nacionais da maioria dos Estados membros, se abstenham? Não se vê como. Ninguém sente verdadeira pertença a algo que não escolheu. Por que artes mágicas deveriam os europeus votar para o Parlamento Europeu, se, no quotidiano, nem o Parlamento, nem a Comissão, nem o Conselho, se preocupam minimamente com as legítimas aspirações, anseios e desejos dos europeus?

E esse fenómeno nem sequer é típico das instituições europeias. É algo que hoje caracteriza a esmagadora maioria das democracias, sejam elas mais verdadeiras, ou mais aparentes. O famigerado divórcio entre cidadãos e classe política não é nenhum divórcio. É uma separação de facto, porque a política partidária (no seu mais baixo valor e pior sentido), nem sequer nos permite divorciar-nos dela. Estamos compulsoriamente em comunhão de mesa, leito e habitação com estas “democracias”, sem direito ao divórcio.

De que me serve ser um cidadão de um País da União, com os impostos em dia, com capacidade eleitoral activa e passiva, se, no momento em que pretendo exercer os meus direitos, só me posso acercar das instituições arrebanhado numa manada partidariamente disciplinada e ajaezada? Porque razão tenho que votar em listas de partidos se apenas um dos candidatos de uma lista me merece confiança? Porque razão não posso candidatar-me fora das máquinas partidárias, se nenhum partido me dá as garantias de seriedade e probidade de que necessito?

Assim o que me sobra? Abster-me! Dizer “não” aos tais Senhores dos Gabinetes, que sempre continuarão a decidir, comigo ou sem mim, com o meu voto ou sem ele, como bem lhes aprouver, seja sobre defesa comum, política internacional ou sobre a salubridade dos galheteiros ou o diâmetro das laranjas.

Restam dois caminhos para fazer cessar esta separação de facto: terminar com o arrebanhamento compulsivo de cidadãos eleitores e elegíveis através das máquinas partidárias – responsáveis pelo grosso dos desmandos que se vivem em quase todos os sistemas políticos de matriz “democrática” –; ou dar uma efectiva representatividade parlamentar à abstenção. Nem mais, nem menos. Se não é possível no sistema haver uma democracia mais directa (ainda que representativa), então permitam, a todos os Europeus, eleger uma cadeira vazia que os represente.

Aliás, seria um sistema fundamental em todo o lado, Portugal incluído. Que gratificante seria saber que 60% das cadeiras do Parlamento Europeu, e de S. Bento, estavam vazias, não porque os Deputados se encontram a trabalhar fora do plenário, mas porque os abstinentes assim o desejaram. Quanto se pouparia aos erários públicos! Quanto reduziria o deficit. E a representatividade dos restantes estava proporcionalmente assegurada. Nada de mais justo. Que verdade política existe com partidos que têm 7, 8 ou 200 deputados num parlamento, como se eles representassem os Povos europeus ou uma Nação, quando o certo era ter apenas 3, 4 ou 100, porque os demais lugares, vazios, pertencem por direito próprio aos representantes de todos aqueles que não se revêem no sistema político partidário “democrático”?

Além de ser democrático, seria verdade! A verdade dos resultados eleitorais, a verdade da representatividade das câmaras políticas e dos governos. Nenhum Parlamento deixaria de o ser, nem nenhuma beliscadura sofreria a democracia, por ter metade das cadeiras vazias por vontade do Povo. Agora enchê-las de representantes de ninguém, apenas para permitir aos Partidos políticos distribuírem tensas e privilégios entre os respectivos apaniguados, isso é que de democracia nada tem.
Haverá então alguma dúvida sobre a razão de ser da abstenção? Nenhuma! A abstenção é a mais pura e simples reacção dos mansos, dos que nada podem fazer contra a maquiavélica simulação democrática em que o sistema aprisiona os cidadãos. A Europa nasceu nos Gabinetes, faz-se nos Gabinetes, e perder-se-á nesses mesmos Gabinetes. É uma questão de tempo, se não houver um afinamento verdadeiramente democrático da representatividade do Povo.